O Estrangeiro Camus.pdf


Vista previa del archivo PDF o-estrangeiro-camus.pdf


Página 1...69 70 71

Vista previa de texto


me ameaçavam. Foi ele, no entanto, quem os acalmou. Olhou-me uns
instantes em silêncio. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Voltou-se e foi-se
embora.
Sentia-me agora outra vez calmo. Estava estafado e deixei-me cair sobre a
cama. Julgo que dormi, pois acordei com estrelas por sobre a minha
cabeça. Subiam até mim ruídos do campo. Cheiros da noite da terra e do
sol refrescavam-me as fontes. A paz maravilhosa deste verão adormecido
entrava em mim como uma maré. Neste momento, e no limite da noite,
soaram apitos. Anunciavam possivelmente partidas para um mundo que
me era para sempre indiferente. Pela primeira vez, há muito tempo,
pensei na minha mãe. Julguei ter compreendido porque é que, no fim de
uma vida, arranjara um "noivo", porque é que fingira recomeçar. Também
lá, em redor desse asilo onde as vidas se apagavam, a noite era como uma
treva melancólica. Tão perto da morte, a minha mãe deve ter-se sentido
libertada e pronta a tudo reviver. Ninguém, ninguém tinha o direito de
chorar sobre ela. Também eu me sinto pronto a tudo reviver. Como se
esta grande cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado da esperança,
diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me pela
primeira vez à terna indiferença do mundo. Por o sentir tão parecido
comigo, tão fraternal, senti que fora feliz e que ainda o era. Para que tudo
ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar
que houvesse muito público no dia da minha execução e que os
espectadores me recebessem com gritos de ódio.